Exposição anterior:
Paula Rito
arborescemos
de 2023-01-07
a 2023-02-17
arborescemos
Ao longo da História, em diversas regiões do globo, a «floresta» adquiriu profusos
significados no imaginário das culturas, sentidos esses que lhe outorgaram um papel
relativamente importante na relação dos povos com o mundo. Por exemplo, enquanto para os
Celtas a floresta era venerada como um «santuário em estado natural», na mitologia Antiga
estes lugares selvagens eram a morada de ninfas, centauros, sátiros e outros seres enigmáticos
que constituíam matéria inspiradora das suas criações líricas. Mas não só, também a literatura
ocidental atribuiu à floresta um rico manancial de atributos e qualidades simbólicas que
inspiraram vários autores.
Tradicionalmente, a floresta abrigava bruxas, eremitas e estranhas criaturas que a
tornavam um lugar tão encantador quanto ameaçador, e que a configuravam como um
repositório de segredos e poderes obscuros, simultaneamente capaz de devorar e de regenerar
quem a interpelava. Sensíveis a este mistério ambivalente da floresta, os artistas interpretam-
na como uma «poderosa manifestação de vida», sendo, ao mesmo tempo, uma fonte geradora
de ilusão e de autenticidade, de serenidade e de inquietação, de prazer e de temor. Em
qualquer dos casos, a floresta permanece como um símbolo recorrente da cultura ocidental, e
persiste como um lugar de revelação, de libertação ou de renovação.
O «bosque» de Paula Rito, a sua pequena floresta de «encantamento», nasceu em 1986.
Foi nesse ano que a pintora começou a plantar árvores num terreno próximo de sua casa. E, o
que despontara como um grande jardim, rapidamente se transformou num imenso «bosque
selvagem» 1 com cerca de dois hectares, muito devido às favoráveis condições climáticas
daquela região. Com o tempo as espécies arbóreas cresceram inexoravelmente, convertendo-
se numa «selva impenetrável» 2 que, para a pintora, não foi senão um estímulo acrescentado
para naturalmente a incorporar no seu trabalho. Como afirma, «gosto do seu estado livre,
selvagem e, por vezes, descontrolado, e gosto de “representar” uma Natureza “inquieta”» 3 .
Porventura, é essa contagiante inquietação que se encontra na génese de arborescemos e que,
generosamente, Paula Rito agora partilha connosco.
Os trabalhos expostos foram realizados nos últimos vinte anos em pleno bosque,
decorrendo «do puro gozo de o desenhar e de o registar como organismo vivo e a crescer» 4 .
Das duas centenas de desenhos desenvolvidos, foram selecionados cerca de 40 que
representam esse inefável exercício de contemplação, de assimilação e de apropriação de um
lugar que, podemos dizer, Paula Rito venera como um «santuário em estado natural». Ao
longo desses anos, nas suas deambulações pelo bosque, utilizou o pincel e a tinta-da-china
sobre uma prancha de formato A3 que lhe permitiu a necessária mobilidade para um registo
en plein air, instantâneo e «verista». Nessas «jornadas», a pintora captou impressões de uma
Natureza em permanente transfiguração, traduziu em estímulos visuais a luz cintilante filtrada
pelos ramos, as fragrâncias que emanam da terra, o livre chilrear dos pássaros. Em cada
desenho fixou um momento fugaz e irrepetível.
Os desenhos de arborescemos são como ensaios «do natural», onde Paula Rito valoriza
o gesto pictórico, numa linguagem espontânea, expressiva e intuitiva. Todavia, os traços
informes, as manchas etéreas e as velaturas de aguadas que se diluem na superfície do papel
não escondem uma atitude de grande intimidade, diríamos ritualística, da pintora perante o
bosque. Na sua experiência do lugar, envolve-se na Natureza deixando-se nela fundir, num
modo em que o «desenho» não é senão o corolário iminente de um tal processo criativo,
assim gerado: «sento-me sobre a terra, erva, pedra (...), o papel no colo ou sobre o chão à
minha frente perante o que olho. As próprias folhas de papel colocadas na superfície incerta
absorvem a humidade e as texturas» 5 .
Percebemos, na «natureza» de Paula Rito, a reinvenção de mecanismos de perceção, de
assimilação e de reconhecimento da Natureza. Os seus desenhos, por vezes enérgicos e
vibrantes, outras vezes contemplativos e serenos, emergem tão «descontrolados» quanto a
paisagem que lhes deu forma, corporizando o lema de que «num jardim sem jardineiro, a
Natureza sobrepõe-se caótica a tudo o que foi intervenção humana» 6 . É, talvez, este caos que
se encontra latente nas suas pinceladas vigorosas, perscrutando a ordem intrínseca ao meio,
ensaiando uma fusão simbólica entre o «natural» e o «artificial», ou seja, entre aquilo que
testemunha na envolvente natural e o que traduz em ambiente plástico, em busca da sua
essência. Na verdade, mais do que reproduzir sensações óticas, efeitos luminosos ou
atmosferas voláteis, sentimos que a informalidade desses traços, o gesto espontâneo e o
impulso expressivo dos registos figuram uma forte empatia entre a pintora e o «seu» bosque,
como se de uma extensão do seu corpo se tratasse. Como se o suporte do desenho não fosse
senão a pele que sente o que os olhos veem. Porque arborescemos.
1 Comunicação pessoal através de correio eletrónico de Paula Rito para Paulo Simões Nunes, 14 de dezembro
de 2022 [Consult. 15 dez. 2022].
2 Idem.
3 Idem.
4 Idem.
5 Rito, Paula, Cadernos de Proença-a-Velha, 2018.
6 Idem.
Paulo Simões Nunes
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