Exposição anterior:
Angela Sanchéz
Tu terás a tua aura
de 2022-09-17
a 2022-10-13
Um traço no ar
Em suma, toda abstração responde a uma crença de que o gesto do artista é um movimento tão natural quanto o do vento ou o de uma espiral de
fumo ou o de um pássaro. Isto é o que permite a Greemberg afirmar que uma pintura existe em e por si mesma, sem necessidade de se referir à
natureza, sem necessidade de justificar ou argumentar nada, tal como existe uma árvore e uma nuvem. Óscar Alonso Molina manifestou sobre
esta artista que “não seria exagero dizer que o seu desenho torna visível a energia oculta que anima a face da natureza”; e assim é. Kandinsky teria
preferido afirmar que representa os movimentos do espírito ou da psique, tanto faz. Mas há algo mais nesta obra extraordinária, algo que talvez
nunca tenhamos visto: uma evidência.
Com certeza os belíssimos textos do De rerum natura de Lucrécio publicados no seu Livro para a exposição no MEIAC em 2016 aglutinem o
projeto pictórico — e existencial — de Ángela Sánchez: nada vem do nada; nada retorna ao nada, demonstra Lucrécio; e cada um dos ciclos pictóricos
desta artista é a crónica desse desdobramento eterno das formas: do nascimento de um primeiro traço a partir dos restos de algo anterior, da
sua evolução — sistemática — numa extensa sucessão de metamorfoses e hibridizações, do seu barroquismo por vezes extremo e, finalmente, do
seu surgimento – no sentido literal – numa explosão de caules, folhas, pistilos, pétalas e flores negras que saturam o espaço e afinal desabam,
criando — literalmente — um buraco negro, como aconteceu na sua série anterior, de inequívocas conotações sexuais.
As séries de Ángela Sánchez são, de modo literal, a história necessária de um gesto; a história da sua arte. Na ânsia de concentrar camadas de
tempo, de reciclar e reconstituir, de desenvolver cada possibilidade há também algo de utopia babélica — o zigurate mesopotâmico, o
antecessor da pirâmide, é aquela construção que se edifica paulatinamente sobre seus próprios restos, aspirando assim a ser
enciclopédico. Mas na realidade trata-se apenas de deixar que a pintura seja e assim possa revelar o que tem de força vital — e demonstrar que é
real —, possa sofrer os acidentes da existência e dar — mais uma vez literalmente — seus frutos. Porque se a obra desta artista ilustra
essencialmente seu próprio futuro, suas vicissitudes, suas surpreendentes metamorfoses, seu barroquismo e seu colapso, sua peculiaridade consiste
decerto em deixar emergir do informe, do residual uma forma ou, para ser mais preciso, um símbolo.
A exposição aqui em análise situa-se precisamente entre dois ciclos. Por um lado, apresenta alguns desenhos relacionados com a sua série
anterior, Terra e tempo (2019), nos quais Sánchez começa a introduzir outra vez o — ainda — informe; uma série de 2020 dedicada a uma
espécie de esfera primordial com um aspecto vegetal, sobre a qual se espalham delicados emaranhados, uma mistura de elementos figurativos
— hastes ou ângulos e linhas retas — e abstratos; e, finalmente, as indiscutíveis obras atuais, nascidas, como mencionado, dos vestígios — ao
mesmo tempo resíduo e essência — desta produção e nas quais ou se agita e se desintegra incessantemente um espaço sem forma ou limites,
ou gravitam sobre um fundo escuro e algo desfocado umas manchas poderosas e compactas, vivas. Espetaculares imagens de uma nova génese; história primitiva de um traço no ar.
Javier Rubio Nomblot
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