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Exposição anterior:

António Vasconcelos Lapa

(a)mar

de 2019-08-08 a 2019-09-06

(a)mar, enquanto o barro não dorme

- a propósito das cerâmicas de António Vasconcelos Lapa

De há uns tempos para cá, a cerâmica têm vindo a ganhar maior visibilidade nos grandes cenários da arte contemporânea. Emergindo de uma espécie de zona de penumbra na teatralidade que caracteriza a mediatização da cultura dos nossos dias, na qual a cerâmica vinha sendo associada à manualidade e proscrita por espartilhos pseudo-conceptuais primários, ela evidencia-se recentemente iluminada pelos projetores de cena, parcialmente redimida de preconceitos afinal transmissores de velhas dicotomias (artes liberais/mecânicas, eruditas/populares, nobres/decorativas). Anthony Gormley, Ai Wei Wei, Grayson Perry, entre muitos outros, exemplificam diversamente essa reabilitação.

Em muitos casos de hoje, a cerâmica assume a artesanalidade mediante um politicamente correto desfazer de fronteiras entre high e low, desde que salvaguardando que, na maioria das vezes e em nome do tal político ou conceptualmente correto, o artista não suje as mãos na cadeia processual que, ao fim de contas, lhe sustenta uma posição cimeira, senão mesmo quase aristocrática, na hierarquia da criação, do trabalho (e da mais valia).

Ora, o trabalho de António Vasconcelos Lapa afirma-nos precisamente uma outra coisa que,  de certo modo, é coerente com o percurso peculiar do autor. Filho do artista Manuel Lapa, António Vasconcelos Lapa cursa escultura na Escola António Arroio e, após uma marcante interrupção de estudos para serviço militar obrigatório na guerra colonial em Angola, retoma a prática artística no convívio familiar e, já numa via de afirmação personalizada e alternativa aos meios académicos convencionais, dedica-se a uma formação específica em cerâmica, em Itália, apoiada pela Fundação Gulbenkian. De 1971 em diante, é docente de Educação Visual e Tecnológica no Ensino Básico do 2º ciclo durante trinta anos e ensina cerâmica no IADE até 1989, desenvolvendo em paralelo trabalho artístico atestado por dezenas de exposições e intervenções.

Com a sua manualidade livre de cuidados, sensual e vibrante, a obra de António Vasconcelos Lapa distingue-se assim dos jogos cénicos que refiro atrás, para descobrir um caminho próprio, sem receio do sujo do pó e da argila, do calor extremo dos fornos, da transformação quase alquímica da matéria, do saber que esta requer e desafia. Agora, mais especialmente, instaura um teatro próprio de objetos e formas  de coisas que, entre o lado adormecido do barro e a sua forma e cor final depois da cozedura, despertam uma essência expressiva que é mais forte, no seu caso, quando menos visível: a presença humana. E, com ela discretamente elidida nessa espécie de sono, oferece uma prova de vida que envolve e supera as formas que assume pois, a haver um lado teatral no seu trabalho, ele acontece quando acorda em nós, espectadores, os atores que somos nesse espetáculo, as figuras humanas que o revelam, dispensando outras.

 

Por outro lado, se é connosco principalmente que o barro acorda, outra prova de vida reside no modo como as cerâmicas de António Vasconcelos Lapa testemunham a história da própria arte cerâmica, ecoando voluntária ou involuntariamente objetos e nomes que estão presentes no seu adn criativo. A lista de casos da sua família genética poderia encher páginas, mas basta destacar pelo menos Jorge Barradas, Querubim Lapa e Jorge Vieira e, sem esquecer Picasso ou a cena internacional reativada principalmente depois de 1965, referir de passagem Maria Keil, Cargaleiro ou, mais recentemente, Virgínia Fróis, Noémia Cruz, Elsa Gonçalves e Pedro Fortuna (este não apenas com discreta mas excelente obra artística em processos cerâmicos como também investigador do tema nas suas vertentes contemporâneas). E,  além de outros nomes mais novos ainda que aqui não cabem por agora, ou do eixo popular pontuado por Rosa Ramalho e pelos bonecos de Estremoz, não há como esquecer no espaço nacional os mais antigos Jorge Colaço e Rafael Bordalo Pinheiro e, sobretudo, a magnífica tradição da azulejaria portuguesa – embora esta, tal como as sardinhas devoradas em fevereiro, venha sendo abusada como imagem de marca para os cardumes do turismo desenfreado.

 

Também é certo que, independentemente disso, a cerâmica tem história e qualidades de plasticidade mais do que suficientes para sustentarem a recuperação e vitalidade do seu lugar hoje; o barro é, afinal, um dos materiais ancestrais mais ricos de potencialidades expressivas e, possivelmente, até resiste como adequado em termos ecológicos (pois se a argila é terra extraída, também a ela se devolve, apesar das transformações a que é sujeita com a cozedura). Além disso, nessa sua plasticidade, que ultrapassa o domínio da visualidade (confirmando como o termo “artes visuais” é redutor), o barro associa-se ao trabalho das mãos e, por essa via, à relação com o corpo humano, fazendo da obra um testemunho factual e, de novo, potente veículo da nossa presença enquanto matéria, enquanto corpo que se revê e dialoga na condição física: na pele e noutras carnalidades, na respiração ou no pulsar cardíaco, na viagem dos impulsos neuronais, em consciência, vigília ou sono profundo. O barro que simplesmente se risca ou o barro que se modela fixa, sempre, um registo primordial do gesto, uma marca do contacto, do toque – e até quando isso se faz mecanicamente não se ilude essa relação, mesmo que seja “diferida” para uma outra forma de vida, mesmo que durma enquanto seca, antes de se metamorfosear na cozedura.

Tudo isso nos remete, pois, para provas de vida. Mas, mais ainda, isso acontece e não é só porque as formas das cerâmicas de António Vasconcelos Lapa são intensamente manuais, corpóreas, demonstrando uma presença física com gesto e escala humana, mas também porque evidenciam na produção (e reprodução) dessa presença o convite a uma experiência comum, de natureza física, táctil.

A dinâmica construtiva, tridimensional e colorida das peças, a sua colocação e leitura no espaço real exigem, desde logo, deambulação, visionamento móvel. As suas peças com elementos articulados com arame ou encaixes, por exemplo, sugerem ao primeiro olhar, quando oscilam subtilmente, a promessa de maior mobilidade e, assim, abrem-se à possibilidade de manipulação, desafiam-na mesmo. E, com esse gesto atrevido ou tímido a que o leitor não resiste, enceta-se um jogo teatral de relacionamento, que a escala acessível favorece. O leitor torna-se ator, ou seja, parte da obra, para que esta se complete.

Ao mesmo tempo, as peças impõem-se na singularidade de cada uma e também de cada sua componente, pois destacam-se inúmeros pequenos constituintes que são sempre diferentes na repetição aparente, por vezes num contágio formal sob uma espécie de displicência algo humorística.  Mas, se essa repetição nos seduz pela diversidade em cada fragmento construtivo que perfaz um todo coerente em cada uma das obras,  estas também saem reforçadas pela sua apresentação em grupos, acentuando pela proximidade as afinidades e diferenças, as dinâmicas conotativas de um todo constituído por partes que se torna, então, paisagem.  

No caso desta exposição e das peças que a integram, suspeita-se que cada objecto não apenas narra mas antes desencadeia uma história que nos inclui então, num universo marinho ou aquático de um mundo familiar e, contudo, inusitado. E entende-se ainda melhor o título com que o autor nomeia a exposição – (a)mar. Na ação nele contida indicia, lucidamente, uma forma de vida (estranha, diria Amália): uma história que se adivinha, bastando para tal um simples gesto sensível, bastando,  descuidadamente, acompanhar o despertar do barro.

 

1 de maio de 2019, Isabel Sabino

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